Saturday, December 28, 2013

Voltar 1

A ansiedade animada face ao regresso, sentida nos dias precedentes, foi rapidamente transformada em vertigem antitética, a partir do momento em que os pés cansados tocaram o chão do aeroporto. Porque, no fundo, não tocaram.

"Ele tinha regressado porque quisera estar de novo no sítio que conhecia. Onde não precisava de falar Português, ou Francês, ou Inglês. Porque é que a carta de Kägi fizera com que, de repente, essa intenção, a mais evidente de todas as intenções, parecesse difícil? Porque é que para ele agora ainda era mais importante do que há pouco, no comboio, que fosse noite quando descesse até à Bubenbergplatz?
Quando, decorrida uma hora, chegou à Praça, teve a sensação de já não a poder tocar. Sim, a palavra era mesmo essa, apesar de soar estranha: ele já não podia tocar na Bubenbergplatz. Já tinha dado três voltas à praça, esperara em frente aos semáforos e olhara em todas as direcções: para o cinema, para o correio, para o monumento, para a livraria espanhola onde encontrara o livro de Prado; em frente, para a paragem do eléctrico, para a igreja do Espírito Santo e para o edifício dos armazéns LOEB. Tinha-se posto de lado, fechado os olhos e concentrado na pressão que o seu corpo pesado exercia sobre o pavimento. As solas dos pés tinham ficado quentes, a rua parecia vir ao seu encontro, mas a impressão perdurara: já não conseguia tocar na praça. E não era apenas a rua, no fundo toda a praça, com aquela intimidade que se desenvolvera ao longo de décadas, que crescera ao seu encontro - também as ruas e os edifícios e as luzes e os ruídos não conseguiam alcançá-lo completamente, não logravam transpor o derradeiro e finíssimo hiato para chegarem inteiramente até ele e se manifestarem como uma recordação que ele não só conhecia, e conhecia de uma forma excelente, mas como algo que ele próprio era, tal como antes sempre tinha sido, de um modo que só agora, ao fracassar, se lhe tornara consciente.
O persistente e inexplicável hiato não o protegia, não era como um amortecedor que tivesse podido significar distâncida e serenidade. Pelo contrário, ele fez com que o pânico crescesse dentro dele, o medo de que, juntamente com todas aquelas coisas conhecidas que ele quisera convocar à sua volta, também ele próprio se perdesse e experimentasse aqui o mesmo que experimentara na madrugada de Lisboa, só que desta vez de uma forma bem mais insidiosa e muito, mas mesmo muito mais alarmante e perigosa, porque enquanto por detrás de Lisboa existira sempre Berna, por detrás da Berna perdida não havia nenhuma outra."

Comboio Nocturno para Lisboa - Pascal Mercier


O reencontro inicial com os pais foi pautado por uma estranha forma de alegria almofadada; os abraços, as palavras, os sorrisos, tudo parecia decorrer em câmara lenta, uma espécie de filme cujo som e imagem se encontravam dissociados, como se de uma videochamada de longa distância e má qualidade se tratasse. O senhor engenheiro salva a situação, mas a distância é inegável.
O quarto, arrumadíssimo. Um brinquinho. A mesinha de cabeceira, o puff, o criado-mudo: imaculados. Nenhuma peça de roupa, nenhum talão de supermercado, nenhum botão perdido, nenhuma caneta sem tampa, nenhum livro ou CD aberto. Nada.
Segue-se um dia entre o sofá e a cama, entre a televisão e o computador, apatia generalizada, uma perplexidade imensa face à casa que sempre fora a minha, mas que naquele momento não me pertencia nem um bocadinho.
Depois pensa-se um bocado, apercebemo-nos da irracionalidade da questão e combatemo-la com mais irracionalidade: desarrumei o quarto todo. E resultou, ou, pelo menos, ajudou. Responde-se às mensagens de texto das últimas 48 horas e lá se arranjam forças para vestir uma farpela qualquer, pegar na carteira e sair.
O regresso à faculdade. Oh diacho. Bela merda. Sensação esquisita. Mas eles estão cá. E as saudades que eu tinha deles vêm rapidamente ao de cima - os abraços, as palavras, os sorrisos já são ao vivo e em directo. Ainda persiste um remoinho estranho nas entranhas, mas a felicidade é inegável.
A progenitora começa a conseguir articular mais algumas palavras, além de "Estás aqui. Estás mesmo aqui.", visitam-se os avós, incorre-se em bebedeiras agressivas nos locais do costume com os suspeitos do costume, encontram-se as amigas de infância, a normalidade regressa.

Visto isto, face a um lusco fusco de 10, 12 dias, quero ver em Fevereiro, ai quero, quero.

Agora é para queimar os últimos cartuchos. Ai tem que ser.


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