Thursday, October 31, 2013

Voltar

"(...) E não é só no tempo que nos ampliamos. Também no espaço nos projectamos para bem mais longe do que é visível. Quando abandonamos um sítio deixamos lá algo de nós próprios, permanecemos lá, apesar de partirmos. E há coisas em nós que só podemos recuperar se lá regressarmos. Aproximamo-nos portanto de nós, viajamos para dentro de nós próprios quando o matraquear monótono das rodas nos transporta em direcção a um sítio por onde percorremos uma etapa da nossa vida, por mais breve que esta tenha sido. Assim que colocamos pela segunda vez o pé na gare da estação estranha, ouvimos as vozes dos altifalantes, cheiramos os cheiros inconfundíveis, não chegamos apenas a um qualquer destino distante, mas atingimos a distância da própria interioridade, talvez num remoto canto do nosso eu, que quando estamos num outro sítio permanece oculto e completamente entregue à invisibilidade. Se não for por isso, porque será que ficamos tão excitados, tão fora de nós quando o revisor anuncia o nome do local, quando ouvimos o chiar dos travões e somos engolidos pela súbita sombra da entrada da Estação? Se não for por isso, por que razão é que o momento em que o comboio se imobiliza definitivamente, após um derradeiro solavanco, se transforma num momento mágico, num instante de silencioso dramatismo? Se isso acontece, é porque a partir do primeiro passo que damos na gare estranha - mas no fundo não tão estranha - retomamos o contacto com um vida que interrompemos e abandonámos quando, na altura, sentimos o primeiro solavanco do comboio a partir. Haverá algo mais excitante do que recuperar uma vida interrompida com todas as suas promessas?"

Comboio Nocturno para Lisboa - Pascal Mercier



Sempre adorei viajar, sempre adorei a prespectiva de viver num local diferente, mesmo desde pequena, ainda que não tivesse qualquer noção do que tal implicava.
Até cerca dos três anos de idade vi apenas o meu pai três vezes por ano - Natal, Páscoa e férias de Verão - porque ele fez o seu Doutoramento em Bath, Reino Unido, nesse período, e penso que desde então vivo fascinada com a experiência de viver longe da terra Natal e com toda a promessa de vivência única e enriquecedora.
Qualquer oportunidade de conhecer uma cidade diferente, incluindo as escapadelas de fim-de-semana e as férias de verão com os pais, era sinónimo de alegria e excitação; não havia criança mais entusiasmada com a tarefa de planear um roteiro turístico. Por mais recôndito que fosse o local em causa, eu descobria um museu, um parque, um castelo, um facto histórico interessante, qualquer coisa que tornava a visita aquela vila ou aldeia essencial! Vi grande parte do nosso país ainda como uma miúda ávida de qualquer forma cultural que a aldeia mais remota do Alentejo pudesse oferecer.
Aos treze anos fiz a minha primeira grande viagem "a solo", acompanhada por colegas e professores, obviamente. Fui a Bruxelas, Bruges, Berna, Luxemburgo, Estrasburgo e Maastricht, e acho que foi durante essa semana que surgiu uma espécie de consciência das implicações do viajar, das implicações da distância. A preocupação dos pais, a gastronomia diferente, o dinheiro envolvido... Viajar tornou-se assim uma experiência associada a custos, a saudade e indissociável do Voltar.
 O regresso. É uma peça importante. Ter por que voltar, ter algo que nos prenda, que nos faça falta na cidade a que chamamos casa. De outro modo, este local deixará rapidamente de ser a nossa casa, sem que o outro local que nos encontamos a visitar assuma esse papel, pelo menos não no mesmo período de tempo. Não seremos mais do que um sem-abrigo à deriva.

Hoje, há quase dois meses afastada da minha terra Natal, sem a melancolia do Douro e das suas pontes iluminadas pelo luar, sei melhor do que nunca que o Porto é a minha casa. Não só pela Ribeira, pelos Jardins do Palácio, ou pela rua de Santa Catarina num Domingo outonal, mas principalmente pelas tradições, pelas pessoas. Pelos autocarros apinhados de gente que fala bem alto, pelo vinho bom e barato em qualquer supermercado, pela facilidade com que o empregado do café do costume partilha a sua vida.
E, claro, é a terra onde estão os meus. A minha mãe e o seu nervosismo, o meu pai e as suas gargalhadas, os meus amigos que não me acompanharam nesta experiência...
Para mim, a prespectiva de um abraço apertado de cada um no dia do regresso, devidamente acompanhado por uma refeição de bacalhau regada por um Cartuxa branco, torna este período muito mais divertido e, confesso, irresponsável. Porque no fim há uma vida interrompida para recuperar.



"(...)Porque é que lamentamos as pessoas que não podem viajar? Porque ao não poderem expandir-se exteriormente também não conseguem ampliar-se interiormente; ao não poderem multiplicar-se, vêem-se também privadas de empreender alargadas digressões para dentro de si próprias e de descobrir quem ou o que poderiam também ter sido."

Comboio Nocturno para Lisboa - Pascal Mercier

Sunday, October 06, 2013

"Lealdade por"

"O'Kelly começou a beber cada vez mais depressa e a boca deixou de lhe obedecer. Levantou-se a custo e saiu da sala com passos vacilantes. Passado algum tempo, regressou com uma folha de papel.
- Isto aqui escrevemos os dois juntos. Em Coimbra, quando parecia que o mundo nos pertencia.
Era uma lista, e em cima estava escrito: LEALDADE POR. Em baixo, Prado e O'Kelly tinham apontado todos os motivos pelos quais a lealdade podia desenvolver-se.

Culpa em relação a alguém; etapas de uma evolução em comum; sofrimento partilhado; alegria partilhada; solidariedade dos mortais; comunhão de convicções; luta comum contra o exterior; forças e fraquezas comuns; mútua necessidade de proximidade; semelhança de gostos; ódio comum; segredos partilhados; fantasias e sonhos partilhados; entusiasmo partilhado; humor partilhado; heróis partilhados; decisões tomadas em comum; sucessos, insucessos, vitórias e derrotas comuns; decepções partilhadas; erros comuns.

Reparara que na lista faltava o amor, disse Gregorious. O corpo de O'Kelly contraiu-se, e por um instante, pareceu recuperar a lucidez.
- Não era algo em que ele acreditasse. Até evitava a palavra. Achava que era kitsch. Costumava dizer que havia três coisas, e apenas essas três: o desejo, o agrado e a segurança. E todas eram efémeras. A mais fugaz era o desejo, depois vinha o agrado, e infelizmente acontecia também que a segurança, a sensação de se sentir protegido junto de alguém, também acabava por se desmoronar. As exigências da vida, todas as coisas com que temos que nos confrontar e ultrapassar acabam sempre por ser demasiadas e demasiado poderosas para que os nossos sentimentos consigam sair incólumes desses confrontos. Era por isso que a lealdade se tornava tão vital. Para ele não se tratava de um sentimento, mas de uma manifestação da vontade, de uma decisão, de uma opção da alma. algo capaz de transformar a imprevisibilidade dos encontros e a casualidade dos sentimentos numa necessidade. Um sopro de eternidade, dizia, apenas um sopro, mas ainda assim um sopro.
Mas enganou-se. Aliás, ambos nos enganámos."

Pascal Mercier
Comboio Nocturno para Lisboa