Sunday, October 06, 2013

"Lealdade por"

"O'Kelly começou a beber cada vez mais depressa e a boca deixou de lhe obedecer. Levantou-se a custo e saiu da sala com passos vacilantes. Passado algum tempo, regressou com uma folha de papel.
- Isto aqui escrevemos os dois juntos. Em Coimbra, quando parecia que o mundo nos pertencia.
Era uma lista, e em cima estava escrito: LEALDADE POR. Em baixo, Prado e O'Kelly tinham apontado todos os motivos pelos quais a lealdade podia desenvolver-se.

Culpa em relação a alguém; etapas de uma evolução em comum; sofrimento partilhado; alegria partilhada; solidariedade dos mortais; comunhão de convicções; luta comum contra o exterior; forças e fraquezas comuns; mútua necessidade de proximidade; semelhança de gostos; ódio comum; segredos partilhados; fantasias e sonhos partilhados; entusiasmo partilhado; humor partilhado; heróis partilhados; decisões tomadas em comum; sucessos, insucessos, vitórias e derrotas comuns; decepções partilhadas; erros comuns.

Reparara que na lista faltava o amor, disse Gregorious. O corpo de O'Kelly contraiu-se, e por um instante, pareceu recuperar a lucidez.
- Não era algo em que ele acreditasse. Até evitava a palavra. Achava que era kitsch. Costumava dizer que havia três coisas, e apenas essas três: o desejo, o agrado e a segurança. E todas eram efémeras. A mais fugaz era o desejo, depois vinha o agrado, e infelizmente acontecia também que a segurança, a sensação de se sentir protegido junto de alguém, também acabava por se desmoronar. As exigências da vida, todas as coisas com que temos que nos confrontar e ultrapassar acabam sempre por ser demasiadas e demasiado poderosas para que os nossos sentimentos consigam sair incólumes desses confrontos. Era por isso que a lealdade se tornava tão vital. Para ele não se tratava de um sentimento, mas de uma manifestação da vontade, de uma decisão, de uma opção da alma. algo capaz de transformar a imprevisibilidade dos encontros e a casualidade dos sentimentos numa necessidade. Um sopro de eternidade, dizia, apenas um sopro, mas ainda assim um sopro.
Mas enganou-se. Aliás, ambos nos enganámos."

Pascal Mercier
Comboio Nocturno para Lisboa

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